LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA E O VETO DE TESES NO TRIBUNAL DO JÚRI

Raquel Rosa e Thais Pinhata

A tese da legítima defesa da honra é uma grande conhecida dos tribunos, pois muito utilizada para garantir absolvições, contrárias às provas dos autos, para homens que mataram mulheres. Inúmeros são os exemplos de seu sucesso, seja no passado, no famoso caso Leila Diniz, seja também recentemente, na absolvição de um homicida confesso, quando o Ministro Fux garantiu a soberania do júri, a contragosto público.

Essa tese, entretanto, embora amarga aos que compreendem sua raiz patriarcal, ganhou nova discussão na ADPF nº 779, ajuizada pelo Partido Democrático Trabalhista. Na ação, o Ministro Dias Toffoli proferiu medida cautelar que vetou o uso da tese nos julgamentos do Tribunal do Júri, tendo esse entendimento sido posteriormente referendado pelos ministros, que de forma unânime entenderam-na inconstitucional por violar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero.

O Ministro Dias Toffoli deu interpretação conforme a Constituição a dispositivos do Código Penal e do Código de Processo Penal, de modo a excluir a honra do âmbito de possibilidades do instituto da legítima defesa. Nesse sentido, ainda, seu voto final inovou ao que fora discutido na liminar, na qual apenas o advogado de defesa do réu tinha ficado impedido de usar a legítima defesa da honra, determinando que também a acusação, a autoridade policial e o juízo não poderão, nem direta ou indiretamente, usar o argumento da legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese) nas fases pré-processual ou processual, nem durante julgamento perante o Tribunal do Júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento como um todo. 

O ministro, que em diversas falas recentes demarcou sua percepção sobre o Tribunal do Júri como instituto anacrônico e falido, defendeu que o uso da tese da legítima defesa da honra seria “odioso, desumano e cruel”, uma “estratagema cruel, subversivo da dignidade da pessoa humana e dos direitos à igualdade e à vida” e, por essa razão, totalmente discriminatório contra a mulher. Ressaltou, ainda, que, tecnicamente, apesar do nome, não se pode falar na existência de legítima defesa, essa, sim, causa de excludente de ilicitude. 

Os demais ministros se manifestaram no mesmo sentido, tendo a Ministra Carmen Lúcia afirmado que a referida tese carecia de amparo legal, tratando-se justificativa pífia para os assassinatos de mulheres com comportamentos que destoassem do ideal imposto pela sociedade. Desta feita, o Ministro Gilmar Mendes defendeu, em seu voto, que a tese é pautada “por ranços machistas e patriarcais, que fomentam um ciclo de violência de gênero na sociedade”. Já Alexandre de Moraes destacou a importância de o Estado atuar ativamente contra a naturalização da violência contra a mulher, sob pena de ofensa ao princípio da vedação da proteção insuficiente e do descumprimento ao compromisso adotado pelo Brasil de coibir a violência no âmbito das relações intrafamiliares. A ministra Rosa Weber e os ministros Marco Aurélio, Nunes Marques e Ricardo Lewandowski acompanharam o relator integralmente.

Naquele julgamento, ainda, os ministros Luiz Fux, Edson Fachin e Roberto Barroso votaram para também dar interpretação conforme a Constituição ao artigo 483, inciso III, parágrafo 2º, do Código de Processo Penal determinando que o quesito genérico de absolvição previsto no dispositivo não autoriza a utilização da esdrúxula tese de legítima defesa da honra, e permitindo ao Tribunal de Justiça, assim, anular absolvições manifestamente contrárias à prova dos autos.

Ocorre que, em que pese os corretos e louváveis alicerces ético-sociais que afastaram as teses de legítima defesa da honra e de clemência nos processos julgados perante o Tribunal do Júri, não guardam coerência sistêmica com as garantias, também constitucionais, que guiam os procedimentos do Tribunal do Júri. 

Isso porque, tal como temos hoje, a íntima convicção e o quesito genérico de absolvição são alicerces para fazer valer as garantias constitucionais inafastáveis ao democrático processo penal, quais sejam a plenitude de defesa e a soberania dos veredictos. São essas as garantias que que se prestam à proteção do mais débil, que, durante o processo, tal como esclareceu Ferrajoli, são os réus, e não as vítimas, ainda que contrarie os interesses da maioria, afastando-se da atrativa dupla populista que une o direito penal do inimigo ao direito penal simbólico.

A decisão, que pode parecer um avanço de pauta social, por excluir do discurso oficial do Judiciário a marca escancarada do machismo estrutural, em realidade, atrofia garantias fundamentais de defesa, abrindo um precedente perigoso para o cerceamento dos discursos da defesa. Dessa forma, ainda que a proibição tenha sido introduzida com uma boa intenção, pode se desdobrar, de maneiras inimagináveis e absolutamente nocivas, em desfavor dos réus, sobretudo pelo encurtamento da Plenitude de Defesa. 

Nesse sentido, dispõe o artigo 5º, inciso XXXVIII, alínea a, da Constituição Federal que “é reconhecida a instituição do Júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: a) a plenitude de defesa”, complementado pelo inciso LV do mesmo artigo que prevê "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes", o que no Código Penal está traduzido na inteligência do artigo 261 ao garantir a defesa técnica, ainda que para o réu desaparecido ou foragido. 

Dessa forma, é cediço, na doutrina penal e na jurisprudência, que os assistidos, nos Tribunais do Júri, têm a garantia da Plenitude de Defesa, sendo esta entendida como condição de regularidade procedimental, sem a qual não se pode admitir o prosseguimento de qualquer ação penal. A defesa foi reconhecida a tal ponto que não pode ser tratada como uma mera formalidade, devendo ser, obrigatoriamente, eficiente, sob pena de anulação, conforme preconiza a súmula 523 do Supremo Tribunal Federal. 

Isso porque, para que a defesa se dê em sua plenitude, é imprescindível atenção aos detalhes, garantindo ao acusado – por meio de seu defensor, por exemplo, não só o acesso a todo meio probatório, mas também com o devido tempo para fazê-lo.

Nesse sentido, a Plenitude de Defesa (art. 5º, inciso XXXVIII, alínea a), típica dos Tribunais Populares, não deverá ser confundida com a Ampla Defesa (art. 5º, LV, CRFB/88), comum a todos os processos. Observe-se, por oportuno, a lição de Guilherme de Souza Nucci (2013, p. 30-31) no tocante ao assunto:

“Vozes poderão surgir para sustentar o seguinte ponto de vista: o legislador constituinte simplesmente repetiu os princípios gerais da instituição do Júri, previstos na Constituição de 1946. Em razão disso, por puro descuido ou somente para ratificar uma ideia, acabou constando a duplicidade. Não nos soa correta a equiparação, até pelo fato de que o estabelecimento da diferença entre ambas as garantias somente é benéfico ao acusado, com particular ênfase, em processos criminais no Tribunal Popular”.

A plenitude de defesa exige uma integral atuação defensiva, que vai além da Ampla Defesa, valendo-se o defensor de todos os instrumentos não vedados em lei, evitando-se qualquer forma de cerceamento. 

O Código de Processo Penal garante a plenitude de defesa dos réus de tal forma, inclusive, que quando e sempre que o defensor não desempenhar seu ofício de forma apropriada, deixando de conferir ao acusado a defesa plena, poderá o juiz, sem qualquer receio de causar constrangimento ou outros incômodos, dissolver o Conselho de Sentença e, se for o caso, intimar a Defensoria Pública para que atue na defesa do acusado, designando nova data para o julgamento, conforme preconiza o artigo 497, inciso V, do citado Código.

Isso porque a defesa técnica é direito indisponível, condição imprescindível à concreta atuação do contraditório e da ampla defesa e, por consequência, à própria imparcialidade do juiz e do tribuno, razão pela qual a Constituição da República considera o advogado indispensável à administração da justiça (art. 133, CRFB/88) e pela qual é dado ao juiz o direito de afastá-lo, imediatamente, quando deficiente.

Embora possa não ser espontâneo, não podemos nos deixar seduzir pelo discurso popular entre doutrinários que antecederam a reforma penal brasileira, na década de 1940, quando muitos defenderam que um excesso de absolvições estaria indo contra a defesa social e, por essa razão, se fazia necessária a expansão do poder de punir. 

Teses como a legítima defesa da honra devem ser verdadeiramente extirpadas pela alteração social. De nada vale afastar, da defesa, a possibilidade de falar sobre a honra nesse contexto, como se isso automaticamente também proibisse o jurado de pensar e valorar os fatos nas mesmas bases machistas da tese, que continua, mesmo que de forma velada, a pautar ações e julgamentos.

É mais socialmente interessante discutirmos a legítima defesa da honra em plenário do que deixar que ela paute absolvições de forma silenciosa.

FONTE:
Texto originalmente publicado no site JOTA.

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